Evangelizar: de “evangelista”, εúάγγελος
em grego koiné (dialeto popular da antiguidade), que significa “boas
novas” ou “boas notícias”. Evangelizar significa, portanto, trazer as
boas novas ao conhecimento dos homens.
As boas novas
Nem todos concordarão com a definição dada acima para o verbo
“evangelizar”. Para um termo tão essencial ao cristianismo, surpreende
que seja tão complexo defini-lo – mesmo entre os próprios cristãos.
Há muitos religiosos (não apenas cristãos) que creem piamente que
sua principal função enquanto pertencentes a um grupo doutrinário ou
igreja seja precisamente repercutir aos quatro cantos do mundo tudo o
que sua respectiva doutrina dita. No caso particular de doutrinas que
nos trazem mandamentos e preceitos morais, isso invariavelmente
significa que, para tais religiosos, evangelizar significa não apenas
trazer um consolo espiritual ou alguma boa notícia do reino de Deus,
mas também ditar como as pessoas devem se portar em sociedade, normalmente afim de não caírem em “tentações e maus caminhos”, e alcançarem o Céu após a morte.
Eu costumo sempre lembrar que religião e igreja não são a mesma coisa. Religião (re-ligare)
é a religação a Deus ou ao Cosmos, uma experiência profundamente
subjetiva que é percebida e praticada pelos homens desde a pré-história
– particularmente através do xamanismo. Igreja (ekklesia)
significa uma comunidade dos escolhidos de Deus – um grupo ou elite de
pessoas que teoricamente possuem alguma espécie de “conhecimento
oculto” capaz de fazer com que os homens possam se elevar ao Céu ou
alcançar o reino de Deus.
A definição de religião pressupõe um Deus universal, um ser cósmico
que pode inclusive ser confundido ou interpretado como o próprio Cosmos
em si, e para o qual cada um de nós se inclina a retornar, passo a
passo, por seus próprios meios, seguindo um caminho pessoal, subjetivo,
intransferível. Já a definição de igreja dá a entender que Deus está a
eleger um grupo de escolhidos, destinados a alguma tarefa especial no
mundo – e a todos os demais, aos que se afastaram de sua doutrina,
geralmente não são esperadas boas notícias após a morte. No melhor dos
casos, serão enviados a alguma espécie de “limbo” onde irão aguardar um
julgamento que, teoricamente, pode ser “aliviado” pelas orações
daqueles que estão no grupo de escolhidos, os eclesiásticos.
Dessa forma, embora todo membro de igreja seja religioso, nem todo religioso será um membro de igreja.
Mesmo os evangelhos,
por exemplo, não foram somente aqueles quatro escolhidos pela
“comissão” de Constantino para compor o Novo Testamento. Existiriam
muitos outros, e, sobretudo, existiriam muitos seguidores destes outros
textos, taxados de apócrifos (segundo alguns, “errado, falso, não
autêntico”, segundo outros, “livro ou texto secreto, conhecimento
oculto”). Estes que foram chamados por Constantino de gnósticos, e
perseguidos e assassinados ou obrigados a se “converter” ao
“cristianismo oficial”, na verdade sempre chamaram a si mesmos de
cristãos, e praticavam sua religiosidade em pequenos grupos, em
colinas, em cavernas, em qualquer lugar – pois compreendiam que o reino
de Deus abrange todo e qualquer lugar, todo e qualquer tempo, e não
necessitavam de apóstolos ou padres para lhes ensinar a direção.
Muitos evangelhos apócrifos foram escondidos em vasos e enterrados
em cavernas na região onde viveu Jesus, pois do contrário teriam sido
queimados como todos os outros condenados por Constantino. Mas ao longo
dos séculos eles foram sendo desenterrados, na medida em que a igreja
de Constantino vinha perdendo sua força e sua capacidade de ditar o que
os homens deveriam ou não considerar como “autêntico”. Em Nag Hammadi
foi achado um dos evangelhos mais profundos de que se tem notícia, o Evangelho de Tomé – nele Jesus nos dá uma pista de onde se encontra, afinal, o reino de Deus:
“Jesus disse: Se aqueles que vos guiam vos disserem: vê, o Reino
está no céu, então os pássaros vos precederão. Se vos disserem: ele
está no mar, então os peixes vos precederão. Mas o reino está dentro de
vós e está fora de vós. Se vos reconhecerdes, então sereis
reconhecidos e sabereis que sois filhos do Pai Vivo. Mas se vos não
reconhecerdes, então estareis na pobreza, sereis a pobreza. (versículo
3)”.
Sem dúvida tal definição do reino é um tanto paradoxal. Ora, se ele
já se encontra aqui e agora, dentre nós e a volta de tudo e de todos,
como poderá algum padre, algum pastor, algum guru espiritual, algum
evangelizador, nos apontar a correta direção?
Aparentemente, todas as direções são corretas. Porém, ao mesmo
tempo, há que se ter olhos para vê-las. Não se trata, portanto, de
buscar alguma espécie de grupo de escolhidos, alguma espécie de salvação
do fim dos tempos, através do conhecimento de uma doutrina em
específico, ou através deste ou daquele preceito moral... Não, jamais
foi assim tão simples, jamais será tão fácil!
Gibran Khalil Gibran, o grande poeta do Líbano, dizia que
“Nenhum homem poderá revelar-vos nada senão o que já está meio
adormecido na aurora do vosso entendimento.” – Ora, é
precisamente isso que nos ensinaram os grandes sábios de outrora, desde
Lao Tsé a Sócrates; é precisamente isso que Jesus queria dizer com o
“Mas se vos não reconhecerdes, então estareis na pobreza, sereis a
pobreza”.
Estamos num mundo repleto de boas novas por todos os lados, debaixo
de pedras e dentre os galhos partidos, além das nuvens e próximo a
beirada dos rios e oceanos, muito além das estrelas mais longínquas e ao
mesmo tempo tão próximo como nosso pensamento mais querido. Não nos
cabe decorar ou recitar orações ou fórmulas mágicas para adentrar ao
reino das boas novas, que estas são apenas muletas para aqueles que
ainda não conseguem se erguer por si mesmos. Cabe-nos tão somente olhar
para dentro, conhecer a nós mesmos, evangelizar ao nosso mais precioso
inimigo.
E para aquele que conseguiu evangelizar a si próprio, aquele que
alcançou tal nirvana da alma, não será sequer necessário buscar
seguidores – eles mesmos o reconhecerão. Não será sequer necessário
anunciar a boa nova, seu olhar já a trará como pérola misteriosa em
oceano profundo. Não será sequer necessário fundar uma doutrina ou
igreja, que esta já foi fundada desde o início dos tempos. A igreja é o próprio reino, a igreja é o Cosmos.
Fonte: Textos Para Reflexão
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