Conversão religiosa é a adoção de uma nova identidade religiosa,
ou uma mudança de uma identidade religiosa para outra. Isto envolve
tipicamente o devotamento sincero a um novo sistema de crença, mas
também pode ser concebido de outras maneiras, como a adoção em uma
identidade de grupo ou linha espiritual.
Pequeno manual para a conversão do infiel
Todos os sistemas de crença ou doutrina religiosa se baseiam em
espécies de guias, manuais passo a passo para uma vida de religiosidade
mais profunda e verdadeira, em suma, uma religação mais eficiente e
efetiva. Porém, me parece que podemos dividi-los em dois grandes grupos:
aqueles em que o campo de aprendizado se dá única e exclusivamente por
vontade e esforço próprios de cada um, sem a possibilidade de atalhos
ou barganhas; e aqueles em que existe uma possibilidade de se avançar
por meio de bênçãos e milagres, por barganhas diretas com Deus, em
troca deste ou daquele benefício divino – um arrebatamento ao Céu,
algum milagre ou salvação de última hora, ou simplesmente uma
iluminação espiritual.
No segundo grupo se encontram a maior parte das igrejas ou sistemas
eclesiásticos. Também pode-se dizer que este tipo de religiosidade é
muito mais comum no Ocidente do que no Oriente. Por exemplo, quando
determinada doutrina afirma que “só seremos salvos se aceitarmos Nosso
Senhor Jesus Cristo em nosso coração”, ela opera por forma de barganha:
aparentemente, o único caminho será esse, e o mérito da salvação não
será exclusivamente nosso, mas muito mais uma forma de “retribuição
divina” por nossa fidelidade. Ainda assim, aceitar o Senhor ainda é
algo que tem mais lógica do que simplesmente doar quantias enormes
de dinheiro a alguma igreja em troca da benção direta desse mesmo
Senhor. Afinal, o que diabos Deus fará com seu dinheiro? Afinal, porque
somente este ou aquele eclesiástico é responsável pela contabilidade
divina?
No primeiro grupo, se encontram a maior parte dos religiosos que não
necessariamente tem igreja. Também pode-se dizer que este tipo de
religiosidade é muito mais comum no Oriente. Tais fiéis são antes fiéis
a Deus, e mesmo que tenham alguma igreja ou grupo de estudos, e um dia
os venha a abandonar, não necessariamente abandonará a própria doutrina
em si. Estes fazem de suas casas, seus corações, suas mentes, sua
única e inabalável catedral – onde sempre poderão orar, onde confessam
antes de tudo a si mesmos.
Por exemplo, os dois primeiros versos do Livro do Caminho
Perfeito, a obra principal do taoismo, dizem que “o caminho que pode
ser seguido não é o Caminho Perfeito”. Superficialmente isto é
um tanto paradoxal, é como se fosse apresentado um manual passo a passo
para algum Céu em que, logo de início, já fosse afirmado que este
manual não poderia ser seguido... No entanto, o que Lao Tsé queria dizer
é análogo ao que muitos grandes sábios sempre afirmaram: que o caminho
espiritual é próprio de cada um. Ou seja, o discípulo jamais poderá
seguir o mesmo caminho do mestre, ele poderá no máximo utilizar seu
exemplo de vida como base para construir o seu próprio caminho.
Pois assim como não existem seres idênticos na criação, da mesma forma
não existem caminhos idênticos para a religação ao Cosmos.
A mim me parece que a abordagem do primeiro grupo tem muito a
ensinar ao segundo. Em realidade, existe uma disparidade tão grande e
evidente à nível de profundeza espiritual entre tais grupos, que há de
se perguntar se o segundo não é, em sua maioria, um grande agrupamento
de visões equivocadas da religião mais aprofundada, universal,
cósmica...
Há muitas igrejas, por exemplo, que foram edificadas inteiramente
sobre textos sagrados aos quais se atribuí uma espécie de “ditado”
direto de Deus. Não são como o Livro do Caminho Perfeito, uma mera
tentativa de um sábio aconselhar aos outros sobre sua própria
experiência de tentar compreender a Deus, mas antes a própria palavra
de Nosso Senhor, verdadeiros Guias da Verdade Absoluta [1].
Se é que tais textos sejam mesmo o que os eclesiásticos pretendem
que sejam, se é que não tenham sido enormemente adulterados com o
passar do tempo, a evolução das sociedades, ou simplesmente por inúmeras
traduções e compilações, ainda assim há que se pensar: se temos um
nossa frente a Verdade codificada em palavras, em símbolos de escrita,
será que isso nos bastará? Será que teremos plenas condições de
interpretar corretamente tal Verdade? Acredito que a história das
guerras religiosas nos traga uma boa resposta a essas perguntas –
afinal, nenhuma guerra, nenhuma matança poderia, jamais, ser santa!
Obviamente que mesmo no Ocidente, que mesmo em tais igrejas com seus
Guias Infalíveis, encontram-se os moderados, os da “ala mística”, ou
que compreendem a religião, o religare, de forma mais
aprofundada. Tenho certeza que esses jamais ergueriam uma espada,
obrigando algum pobre coitado a se “converter” a sua doutrina...
Pois como poderia alguém, nalgum dia insano, converter outro
alguém ao seu próprio pensamento, a sua própria doutrina, pela força?
Pela sedução das palavras? Pelo terror anunciado de um lago de enxofre
eterno aguardando todos aqueles que não se salvarem, que não aceitarem
Nosso Senhor?
Ora, perguntem aos índios da América, perguntem aos negros da
África, se eles nalgum dia se converteram ao Deus desses homens que os
trataram como mercadoria, como escravos, como selvagens “sem alma”, mas
nunca como irmãos, como seres na mesma caminhada para o Cosmos de onde
todos foram catapultados na imensidão infinita. Dizer, da boca para
fora, “eu aceito Nosso Senhor”, não significa que tenham aceitado. A
liberdade jaz na mente e, assim como o caminho espiritual, é exclusiva
de cada um, graças a Deus.
William James,
um dos fundadores da psicologia, em seu grandioso tratado “Variedades
da experiência religiosa”, postula que a conversão religiosa verdadeira
pode aparentemente ocorrer de uma hora para outra, do dia para noite,
em algum insight momentâneo, mas que quase que certamente já
vinha sendo edificada, lentamente, nos calabouços ocultos do
inconsciente. Que nossa questão com Deus é universal, todos temos de
seguir este caminho, ainda que alguns o sigam inconscientemente ou o
chamem de estudo da natureza – o importante é que, a nossa maneira,
estamos todos caminhando à frente, aprimorando nossas potencialidades.
Lao Tsé e outros sábios sempre souberam que jamais poderiam
converter alguém – o máximo que poderiam fazer era dar o exemplo, falar
sobre sua própria experiência espiritual, sobre os percalços e as
consolações do caminho, e esperar pacientemente que cada um, por si só, a
seu próprio momento, convertesse a si mesmo.
Que não existe manual para o caminho alheio, apenas para o nosso
próprio. O único infiel que tem de ser convertido é aquele que se
encontra em nossa própria alma. Somos o juiz e o escravo, o apóstolo e o
seguidor, o mestre e o discípulo, de nossa própria causa. Temos de ser
fiéis ao nosso próprio ser, ao nosso tanto de fagulha divina
que, ainda assim, é e sempre foi a única maneira com que Deus falou
conosco – como o vento que sempre nos envolveu, embora não saibamos ao
certo por onde ele tem passado.
A seguir, o evangelho do agnóstico...
[1] Muito embora, mesmo no taoismo existam lendas que colocam Lao
Tsé como uma espécie de deus na Terra. Da mesma forma que existem
religiosos superficiais no Ocidente, existem também no Oriente. Este
texto não pretende ser, portanto, uma exaltação da religiosidade
oriental como “superior”. Apenas procura atestar que a religiosidade
pura, não eclesiástica, é muito mais comum na cultura oriental –
independente de seus seguidores as terem compreendido ou não.
Fonte: Textos Para Reflexão
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