Em ambas, Scalfari formula - como alguém que tem uma cultura iluminista e não procura a Deus - “perguntas de um não crente ao papa jesuíta chamado Francisco”.
Pois “aqui e hoje não sou um jornalista - escreve Scalfari - sou um não crente que há anos está interessado e apaixonado pela pregação de Jesus de Nazaré, filho de Maria e de José (...). Tenho uma cultura iluminista e não procuro a Deus. Acho que Deus seja uma invenção consoladora e ilusória da mente dos homens”.
Em primeiro lugar o pontífice agradece pela atenção com que Scalfari quis ler a encíclica Lumen Fidei que “está dirigida não somente a confirmar na fé em Jesus Cristo aqueles que já a tem, mas também a suscitar um diálogo sincero e rigoroso com quem, como você, se define ‘um não crente há anos interessado e fascinado pela pregação de Jesus de Nazaré’, escreve o Papa.
Duas circunstâncias ao longo da história dificultaram esse diálogo, destacou o Papa. A primeira é que a fé cristã foi muitas vezes e erroneamente vista como “escuridão da superstição que se opõe à luz da razão”. Dessa forma entre Igreja e cultura iluminista se instaurou um muro que impossibilitou todo e qualquer diálogo.
A segunda circunstância, diz o Papa, é que para o crente este diálogo não é um acessório secundário “mas é, pelo contrário, uma expressão íntima e indispensável”.
Confessa o Pontífice que “a fé, para mim, nasceu de um encontro com Jesus. Um encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um novo sentido à minha existência”. “Sem a Igreja – acredite-me – não poderia ter encontrado Jesus, embora com a consciência de que aquele grandíssimo dom que é a fé está guardado nos vasos de barro da nossa humanidade”.
E é “desta pessoal experiência de fé vivida na Igreja, que me encontro à vontade ao escutar as suas perguntas e ao buscar, junto com você, os caminhos pelos quais possamos, talvez, começar a percorrer juntos”, escreve o Pontífice.
Agora, a carta do Papa, na íntegra:
AO DIRECTOR DO JORNAL ITALIANO «LA REPUBBLICA» DOTT. EUGENIO
SCALFARI
Vaticano,
4 de Setembro de 2013
Prezado
Dr. Scalfari,
Com viva cordialidade queria, através desta,
procurar, ainda que apenas em linhas gerais, responder
à carta que houve por bem dirigir-me, nas páginas
do jornal La Repubblica de 7 de Julho,
com uma série de reflexões pessoais, que
haveria de desenvolver nas páginas do mesmo jornal do
dia 7 de Agosto.
Começo por lhe agradecer a solicitude que teve em ler a Encíclica Lumen fidei.
De facto, esta – na intenção do meu amado Predecessor, Bento XVI,
que a idealizou e em grande parte redigiu e de quem
a herdei com imensa gratidão – tem em vista
não só confirmar na fé em Jesus Cristo aqueles
que nela já que se reconhecem, mas também
suscitar um diálogo sincero e rigoroso com quem,
como o senhor, se define «um não-crente há muitos anos
interessado e fascinado pela pregação de Jesus
de Nazaré».
Parece-me, pois, muito positivo, tanto para nós
individualmente como para a sociedade em que vivemos,
determo-nos a dialogar sobre uma realidade tão
importante como é a fé, que faz apelo à
pregação e à figura de Jesus.
Em particular, penso que há hoje duas circunstâncias
que tornam obrigatório e precioso este diálogo.
Aliás o mesmo constitui – como se sabe – um
dos objectivos principais do Concílio Vaticano
II, querido por João XXIII, e do ministério
dos Papas, que desde então até aos nossos dias – cada
um com a própria sensibilidade e contribuição
– têm caminhado pelo sulco traçado pelo referido
Concílio.
A primeira circunstância – como lembram as páginas
iniciais da Encíclica – decorre do facto de, ao
longo dos séculos da modernidade, se ter
assistido a um paradoxo: a fé cristã, cuja novidade e
incidência na vida do homem foram expressas,
desde o início, precisamente através do
símbolo da luz, tem sido muitas vezes rotulada como a
obscuridade da superstição, que se opõe à luz da
razão. E assim se chegou à incomunicabilidade
entre a Igreja e a cultura de inspiração
cristã, por um lado, e a cultura moderna de
traça iluminista, por outro. Chegou o tempo – o próprio
Vaticano II inaugurou a estação – de um diálogo
aberto e sem preconceitos, que reabra as portas
para um encontro sério e fecundo.
A segunda circunstância, para quem procura ser fiel
ao dom de seguir Jesus na luz da fé, decorre do facto
de este diálogo não constituir um acessório
secundário da existência do crente; antes, pelo
contrário, é sua expressão íntima e
indispensável. A este respeito, deixe-me
citar-lhe uma declaração, na minha opinião muito
importante, da Encíclica: dado que a verdade
testemunhada pela fé é a do amor – como lá se sublinha –
«resulta claramente que a fé não é
intransigente, mas cresce na convivência que
respeita o outro. O crente não é arrogante; pelo
contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que, mais
do que possuirmo-la nós, é ela que nos abraça e
possui. Longe de nos endurecer, a segurança
da fé põe-nos a caminho e torna possível o
testemunho e o diálogo com todos» (n. 34). Este é o
espírito que me anima nas palavras que lhe escrevo.
A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus: um
encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma
direcção e um sentido novo à minha existência;
mas, ao mesmo tempo, um encontro que se tornou
possível pela comunidade de fé em que vivi e
graças à qual encontrei o acesso ao entendimento da
Sagrada Escritura, à vida nova que flui, como jorros
de água, de Jesus através dos sacramentos, à
fraternidade com todos e ao serviço dos pobres,
verdadeira imagem do Senhor. Sem a Igreja –
creia-me! –, eu não teria podido encontrar
Jesus, embora ciente de que este dom imenso da
fé está guardado em frágeis vasos de barro
que é a nossa humanidade.
Ora, é precisamente a partir desta experiência
pessoal de fé vivida na Igreja que me sinto à
vontade para perscrutar as suas perguntas e procurar,
juntamente com o senhor, as estradas ao longo das
quais possamos talvez começar a fazer um
pedaço de caminho juntos.
Desculpe, se não sigo passo a passo as
argumentações que propôs no editorial de 7 de Julho.
Parece-me mais frutuoso – ou pelo menos está mais de
acordo com o meu génio – ir de certo modo ao
coração das suas considerações. Não entro
sequer na modalidade de exposição que segue a
Encíclica e na qual o senhor entrevê a falta duma secção
dedicada especificamente à experiência histórica
de Jesus de Nazaré.
Para começar, limito-me a observar que uma tal análise
não é secundária. Trata-se efectivamente –
seguindo aliás a lógica que guia o desenrolar
da Encíclica – de deter a atenção sobre o
significado daquilo que Jesus disse e fez e assim,
em última instância, sobre aquilo que Jesus foi e é
para nós. De facto, as Cartas de Paulo e o
Evangelho de João, especialmente referidos na
Encíclica, estão construídos sobre o sólido
fundamento do ministério messiânico de Jesus
de Nazaré, cuja resolução chega ao seu auge na
páscoa de morte e ressurreição.
Por isso, é preciso confrontar-se com Jesus –
diria – na dimensão concreta e tosca da sua história, tal
como nos é narrada sobretudo pelo mais antigo
dos Evangelhos, o de Marcos. Aí se constata
que o «escândalo», que as palavras e a
actividade de Jesus provocam ao seu redor,
deriva da sua extraordinária «autoridade» – termo este,
atestado já desde o Evangelho de Marcos mas que
não é fácil de traduzir em italiano. A palavra
grega é exousia, que literalmente se
refere àquilo que «provém do ser» que se é.
Trata-se portanto, não de algo exterior ou
forçado, mas de algo que brota de dentro e se impõe
por si mesmo. Realmente Jesus impressiona,
desinstala, reforma a partir – Ele mesmo o disse – da
sua relação com Deus, que trata familiarmente
por Abbá, o qual Lhe confere esta «autoridade» para que Ele a aplique a favor dos homens.
Assim, Jesus prega «como alguém que tem autoridade»,
cura, chama os discípulos para O seguirem, perdoa...
Todas estas coisas, no Antigo Testamento, são
prerrogativa de Deus, e só Deus. A pergunta,
que mais vezes reaparece no Evangelho de
Marcos – «Quem é este que... ?» – e que diz
respeito à identidade de Jesus, nasce da constatação
de uma autoridade diferente da do mundo, uma
autoridade que não tem como finalidade exercer
um poder sobre os outros mas servi-los,
dar-lhes liberdade e plenitude de vida. E isto
até ao ponto de arriscar a sua própria vida, até
experimentar a incompreensão, a traição, a
rejeição, até ser condenado à morte, até cair no estado
de abandono na cruz. Mas Jesus permanece fiel a
Deus até ao fim.
E é precisamente então – como exclama o centurião
romano ao pé da cruz, no Evangelho de Marcos – que,
paradoxalmente, Jesus Se mostra como o Filho de
Deus! Filho de um Deus que é amor e que quer,
com todo o seu ser, que o homem, todo o homem,
se descubra e viva, também ele, como seu
verdadeiro filho. Para a fé cristã, isto é certificado
pelo facto de que Jesus ressuscitou: não para
triunfar sobre aqueles que O rejeitaram, mas para
atestar que o amor de Deus é mais forte do que
a morte, o perdão de Deus é mais forte do que
todo o pecado, e que vale a pena gastar a própria
vida, até ao fim, para testemunhar este dom imenso.
A fé cristã acredita nisto: Jesus é o Filho de
Deus que veio dar a sua vida para abrir a todos o caminho
do amor. Por isso, ilustre Dr. Scalfari, tem
razão quando vê, na encarnação do Filho de
Deus, o perno da fé cristã. Já Tertuliano
escrevia: «caro cardo salutis – a carne é o perno
da salvação». É que a encarnação, ou seja, o
facto de o Filho de Deus ter tomado a nossa
carne e compartilhado alegrias e sofrimentos,
vitórias e derrotas da nossa existência até ao
grito da cruz, vivendo tudo no amor e na
fidelidade ao Abbá, testemunha o amor incrível
que Deus tem por cada homem, o valor inestimável
que lhe reconhece. Por isso, cada um de nós é
chamado a assumir o olhar e a opção de amor de
Jesus, a entrar no seu modo de ser, pensar e agir. Esta
é a fé, com todas as suas expressões que são
descritas concretamente na Encíclica.
* * *
Além disso, no mesmo editorial de 7 de Julho, o
senhor pergunta-me como entender esta originalidade
da fé cristã, assente precisamente na encarnação
do Filho de Deus, face a outras crenças que por
sua vez gravitam em torno da transcendência
absoluta de Deus.
Eu diria que a sua originalidade está
precisamente no facto de que a fé nos faz participar, em
Jesus, na relação que Ele mesmo tem com Deus que
é Abbá e, nesta luz, participar na
relação que Ele tem com todos os outros
homens, incluindo os inimigos, sob o signo do
amor. Por outras palavras, a filiação de Jesus, como
no-la apresenta a fé cristã, não é revelada para
marcar uma separação intransponível entre
Jesus e todos os outros, mas para nos dizer
que, n'Ele, todos somos chamados a ser filhos do
único Pai e irmãos entre nós. A singularidade de
Jesus visa a comunicação, não a exclusão.
Claro, daqui segue-se também – e não é pouco – a
distinção entre a esfera religiosa e a esfera
política, que está sancionada no «dar a Deus o
que é de Deus e a César o que é de César", afirmada
com nitidez por Jesus e sobre a qual,
laboriosamente, se construiu a história do Ocidente. De
facto, a Igreja é chamada a semear o fermento e
o sal do Evangelho, ou seja, o amor e a
misericórdia de Deus que envolvem todos os homens,
apontando para a meta escatológica e definitiva do
nosso destino, enquanto à sociedade civil e
política cabe a árdua tarefa de articular e
encarnar na justiça e na solidariedade, no
direito e na paz, uma vida cada vez mais humana.
Para quem vive a fé cristã, isto não significa fuga do
mundo nem vontade de qualquer hegemonia, mas
serviço ao homem, ao homem todo e a todos os
homens, a partir das periferias da história e
mantendo desperto o sentido da esperança que
impele a realizar o bem em todas as circunstâncias e
com o olhar sempre fixo no além.
Na conclusão de seu primeiro artigo, o senhor
pergunta-me ainda o que dizer aos irmãos judeus
sobre a promessa que Deus lhes fez: terá ela caído
completamente no vazio? Trata-se de uma questão –
pode crer – que nos interpela radicalmente como
cristãos, porque, com a ajuda de Deus,
sobretudo a partir do Concílio Vaticano II
redescobrimos que o povo judeu continua a ser, para
nós, a raiz santa donde germinou Jesus. Na amizade
que cultivei durante todos estes anos com os
irmãos judeus, na Argentina, também eu muitas
vezes questionei a Deus na oração,
especialmente quando a mente se detinha na recordação da
experiência terrível do Holocausto. O que lhe
posso dizer – com palavras do apóstolo Paulo –
é que nunca esmoreceu a fidelidade de Deus à
aliança estabelecida com Israel e que, através
das terríveis provações destes séculos, os judeus
conservaram a sua fé em Deus. E nunca lhes
agradeceremos suficientemente por isso, não
só como Igreja, mas também como humanidade. Além
disso, perseverando eles precisamente na sua fé no
Deus da aliança, lembram a todos, inclusive a nós
cristãos, o facto de que permanecemos, como
peregrinos, à espera do regresso do Senhor e, por
conseguinte, devemos manter-nos sempre
abertos a Ele, sem nos fecharmos jamais no que
já conseguimos.
E assim chego às três perguntas que me coloca no artigo de 7 de Agosto.
Parece-me que, nas duas primeiras, aquilo que lhe
está a peito é entender a atitude da Igreja com quem
não partilha a fé em Jesus. Antes de mais nada,
pergunta-me se o Deus dos cristãos perdoa a
quem não acredita nem procura acreditar.
Admitido como dado fundamental que a
misericórdia de Deus não tem limites quando alguém se Lhe
dirige com coração sincero e contrito, para
quem não crê em Deus a questão está em
obedecer à própria consciência: acontece o
pecado, mesmo para aqueles que não têm fé, quando se
vai contra a consciência. De facto, ouvir e obedecer
a esta significa decidir-se diante do que é
percebido como bem ou como mal; e é sobre esta
decisão que se joga a bondade ou a maldade
das nossas acções.
Em segundo lugar, o senhor pergunta-me se é um
erro ou um pecado pensar que não existe nada absoluto e,
consequentemente, também não há uma verdade
absoluta mas apenas uma série de verdades
relativas e subjectivas. Para começar, eu não falaria
– nem mesmo para aqueles que acreditam – de verdade
«absoluta» dando ao termo absoluto o sentido
daquilo que está desligado, que carece de
qualquer relação, porque a verdade, segundo a
fé cristã, é o amor de Deus por nós em Jesus Cristo.
Portanto, a verdade é uma relação! E tanto é assim,
que cada um de nós capta a verdade e exprime-a
a partir de si mesmo: da sua história e
cultura, da situação em que vive, etc. Isto não quer
dizer que a verdade seja variável e subjectiva.
Longe disso! Significa, sim, que ela se nos dá
sempre e só como um caminho e uma vida.
Porventura não disse o próprio Jesus: «Eu sou o
caminho, a verdade e a vida»? Por outras palavras,
sendo a verdade, em última análise, uma só coisa com
o amor, requer a humildade e a abertura para
ser buscada, acolhida e expressa. Concluindo, é
preciso entendermo-nos bem sobre os termos e,
para sair dos estrangulamentos duma
contraposição... absoluta, talvez seja necessário
reformular em profundidade a questão. Penso que isto
seja hoje absolutamente necessário para se
estabelecer aquele diálogo sereno e construtivo
que eu almejava ao início deste meu texto.
Na última questão, pergunta-me se, com o
desaparecimento do homem da terra, desaparecerá também o
pensamento capaz de pensar Deus. É certo que a
grandeza do homem está em ser capaz de pensar
Deus, isto é, em poder viver uma relação
consciente e responsável com Ele. Mas, a relação é entre
duas realidades. Deus – tal é o meu pensamento e
a minha experiência, mas são muitos os que,
ontem e hoje, os compartilham! - não é uma
ideia, ainda que muito elevada, fruto do pensamento
do homem; Deus é realidade com o «R» maiúsculo. Jesus
no-Lo revela – e vive em relação com Ele –
como um Pai de bondade e misericórdia
infinitas. Por isso, Deus não depende do nosso
pensamento. Aliás, mesmo quando acabar a vida
do homem sobre a terra – e, segundo a fé cristã, este
mundo tal como o conhecemos está destinado em todo
o caso a perecer –, não deixará de existir o
homem; e com ele, de um modo que ignoramos, o
próprio universo também não. A Escritura fala
de «um novo céu e uma nova terra» e afirma
que, no final – num onde e quando que nos
ultrapassam mas para os quais, na fé, tendemos com
desejo e expectativa – Deus será «tudo em todos».
E assim concluo, ilustre Dr. Scalfari, estas minhas
reflexões, suscitadas por tudo o que me quis
comunicar e perguntar. Receba-as como uma
tentativa de resposta, provisória mas sincera e
confiante, ao convite que vislumbrei para fazermos um
pedaço de estrada juntos. A Igreja – creia-me! –
apesar de todas as lentidões, infidelidades,
erros e pecados que possa ter cometido e pode
ainda cometer nos que a compõem, não tem outro
sentido e finalidade que não seja viver e
testemunhar Jesus: Ele, que foi enviado pelo Abbá
para «anunciar a Boa-Nova aos pobres,
proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a
recuperação da vista, mandar em liberdade os
oprimidos, proclamar um ano favorável da parte
do Senhor» (Lc 4,18-19 ).
Franciscus PP
Fonte: News.VA - Radio Vaticana