Muitas pessoas têm a Bíblia como paradigma para suas
crenças. Contudo, esquecem de se aprofundar nos estudos dela. Uma interpretação
literal da mesma, sem considerar sua linguagem, muitas vezes metafórica e
simbólica, nem situar os livros que a constituem nos seus respectivos contextos
históricos, ou deixar de considerar suas origens e a língua original em que
foram escritos, pode dar margem às mais diversas interpretações, muitas vezes
ilógicas e contraditórias, como, de fato, tem ocorrido. Isso sem falar das
diversas traduções tendenciosas, feitas por tradutores de determinadas
denominações religiosas, que distorceram os textos originais para adaptá-los às
suas crenças pessoais.
Um exemplo claro de falta de aprofundamento no estudo da
Bíblia e de descaso com o contexto histórico, vemos na adoção, como verdade, da
lenda de Satanás e o seu séquito de anjos caídos. Analisemos agora esses
conceitos, conforme nos explica Severino Celestino da Silva, no seu excelente
livro "Analisando as traduções Bíblicas":
SATANÁS
Satanás é uma figura muito controvertida na Bíblia. A
palavra "Satã" significa em hebraico "acusador",
"opositor". Aparece, pela primeira vez no livro de Jó, sendo como um
promotor celestial. A sua intimidade com Deus e o direito de entrar no "Céu",
de ir e vir livremente e dialogar com Ele, torna-o uma figura de muito
destaque. Veja o livro de Jó 1:6 "Um dia em que os filhos de Deus se
apresentaram diante do Senhor, veio também Satanás entre eles".
O livro de Jó foi escrito depois do Exílio Babilônico.
Sabemos que o povo judeu, tendo retornado a Israel com a permissão de Ciro, rei
persa, no ano 538 a.C, assimilou muitos costumes dos persas. Isto ocorreu
devido à simpatia e apoio que receberam do rei, que inclusive permitiu a
construção do Segundo Templo judaico e ainda devolveu muitos de seus tesouros,
que haviam sido roubados. A religião dos persas, o Zoroastrismo, influenciou
sobremaneira o judaísmo. No Zoroastrismo, existe o Deus supremo Ahura-Mazda,
que sofre a oposição de uma outra força poderosa, conhecida como Angra Mainyu,
ou Ahriman, "o espírito mau". Desde o começo da
existência, esses dois espíritos antagônicos têm-se combatido mutuamente.
O Zoroastrismo foi uma das mais antigas religiões a
ensinar o triunfo final do bem sobre o mal. No fim, haverá punição para os maus,
e recompensa para os bons. E foi do Zoroastrismo que os judeus aprenderam a
crença em um Ahriman, um diabo pessoal, que, em hebraico, eles chamaram
de SATAN - Por isso, o seu aparecimento na Bíblia só ocorre no livro de
Jó e nos outros livros escritos após o exílio Babilônico, do ano 538 a.C. para
cá. Nestes livros já aparece a influência do Zoroastrismo persa. Observe ainda
que a tentação de Adão e Eva é feita pela serpente e não por Satanás,
demonstrando assim que o escritor do Gênesis não conhecia Satanás. Os sábios
judaicos, interpretando o Eclesisastes 10:11, afirmam (Pirkei de Rabi
Eliezer 13) que, na verdade, a cobra que seduziu Adão e Eva era o Anjo
Samael, que apareceu na terra sob a forma de serpente. Ele, que é conhecido
como o "dono da língua", usou sua língua para seduzir Adão e
Eva ao pecado. O poder do mal está em sua língua, e este poder pode ser usado
somente para dominar o sábio. Ele não pode prevalecer sobre um ignorante.
Uma outra observação interessante é que o livro de Samuel
foi escrito antes da influência persa no ano de 622 a.C. e, no II livro de
Samuel em seu capítulo 24:1, você lê com relação ao recenseamento de Israel o
seguinte: "A cólera de IAHVÉH se inflamou novamente contra Israel e
excitou David contra eles, dizendo-lhe: Vai recensear Israel e Judá".
Agora veja esta mesma passagem no I livro das Crônicas,
que foi escrito no começo do ano 300 a.C, portanto, já sob a influência do
Zoroastrismo persa, com o já conhecimento de Ahriman/Satanás. No
capítulo 21:1 desse livro está escrito: "E levantou-se Satã contra Israel,
e excitou David a fazer o recenseamento de Israel". Portanto, o que era
IAHVÉH no livro de Samuel aparece agora no livro das Crônicas como SATANÁS
(Confira em sua Bíblia).
Assim, está evidenciado que Satanás não é um conceito
original da Bíblia, e sim, introduzido nela, a partir do Zoroastrismo Persa.
Passa a existir a partir daí, "uma lenda" entre
o povo judeu de que Satanás é considerado como o rei dos demônios, que se
rebelara contra Deus sendo expulso do céu. Ao exilar-se do céu, levou consigo
uma hoste de anjos caídos, e tornou-se seu líder. A rebelião começou quando
ele, Satanás, o maior dos anjos, com o dobro de asas, recusou prestar homenagem
a Adão. Afirmam ainda que esteve por trás do pecado de Adão e Eva, no Jardim do
Éden, mantendo relação sexual com Eva, sendo portanto, pai de Caim. Ajudou Noé
a embriagar-se com vinho e tentou persuadir Abraão a não obedecer a Deus no
episódio do sacrifício do seu filho Isaac.
Muitas pessoas acreditam muito no poder de Satanás e até
o enaltecem em suas igrejas, razão pela qual achamos que seriam fechadas muitas
igrejas se os seus dirigentes deixassem de acreditar em Satanás.
Para seu maior esclarecimento, Kardec faz uma observação
sobre Satanás: "com relação a Satanás, é
evidentemente a personificação do mal sob uma forma alegórica, pois não se
poderia admitir um ser mau a lutar, de potência a potência, com a Divindade e
cuja única preocupação seria a de contrariar os seus designos. Precisando o homem
de figuras e de imagens para impressionar a sua imaginação, ele pintou os seres
incorpóreos sob uma forma material, com atributos lembrando suas qualidade e
seus defeitos". E conclui: "Modernamente, os anjos ou Espíritos puros
são representados por uma figura radiosa, com asas brancas, símbolo da pureza;
Satanás com dois chifres, garras e os atributos da animalidade, emblema das
paixões inferiores. O vulgo, que toma as coisas pela letra, viu nesses emblemas
um indivíduo real, como outrora vira Saturno na alegoria do Tempo".
Precisamos compreender e acreditar na misericórdia divina
e no amor de Deus por nós. Um Deus Onisciente, Onipresente, infinitamente justo
e bom e sobretudo AMOR que jamais colocaria entre nós, suas criaturas, alguém
com os atributos que o homem colocou em Satanás.
DEMÔNIOS
A palavra demônio não implica na idéia de Espírito mau
senão na sua significação moderna, porque a palavra grega Daimon, da
qual se origina, significa, "Deus", "poder divino",
"gênio", "inteligência", e se emprega para designar os
seres incorpóreos, bons ou maus, sem distinção.
Segundo a significação vulgar, a palavra
"demônios" significa seres essencialmente malfazejos e seriam, como
todas as coisas, criação de Deus. Ora, Deus que é soberanamente justo e bom não
pode ter criado seres predispostos ao mal por sua natureza e condenados por
toda a eternidade. Se não são obras de Deus, seriam, pois, como Ele, de toda a
eternidade, ou então haveria várias potências soberanas.
Ainda segundo Kardec, a primeira condição de toda
doutrina é de ser lógica. Ora, a dos demônios, em seu sentido absoluto, peca
por essa base essencial.
Compreende-se que, na crença dos povos atrasados, que não
conheciam os atributos de Deus, fossem admitidas as divindades malfazejas, como
também os demônios, mas, é ilógico e contraditório, para aqueles que fazem da
bondade de Deus um atributo por excelência, suporem que Ele possa ter criado
seres devotados ao mal e destinados a praticá-lo perpetuamente. Isso seria
negação da bondade divina. Os partidários da doutrina dos demônios se apóiam
nas palavras do Cristo. Mas estarão bem certos do sentido que Ele dava à
palavra demônio? Não sabemos que a forma alegórica era um dos caracteres
distintivos da Sua linguagem? Tudo que o Evangelho contém deve ser tomado ao pé
da letra? Não seremos nós quem contesta a autoridade dos Seus ensinamentos,
pois desejamos vê-los mais no coração do que na boca dos homens. Não precisamos
de outra prova além desta passagem:
Logo após esses dias de aflição, o Sol
obscurecerá e a lua não derramará mais sua luz, as estrelas cairão do céu e as
potências celestes serão abaladas (...) Digo-vos, em verdade, que esta geração
não passará sem que todas estas coisas se tenham cumprido (Mateus 24:29 e 35)
Não temos visto a forma do texto bíblico ser contraditada
pela Ciência no que se refere à Criação e ao movimento da Terra? Não pode
ocorrer o mesmo com certas figuras empregadas pelo Cristo, que devia falar de
acordo com os tempos e os lugares? O Cristo não poderia dizer, conscientemente,
uma coisa falsa. Assim, pois, se em suas palavras há coisas que parecem chocar
a razão, é porque não as compreendemos ou as interpretamos mal.
Os homens acreditaram ser os anjos entes perfeitos por
toda eternidade e tomaram os Espíritos inferiores por seres perpetuamente maus.
No entanto, pela palavra demônio, devemos entender como sendo os Espíritos
impuros que, freqüentemente, não valem mais do que as entidades designadas por
esse nome, e com a diferença de que seu estado é transitório. São, portanto, os
Espíritos imperfeitos que murmuram contra as provas que devem suportar e que,
por isso, suportam-nas por mais tempo: chegando, porém, por seu turno, a saírem
desse estado, quando o quiserem. Poder-se-ia aceitar então a palavra "demônio"
com esta restrição. Nesse sentido exclusivo, poderia induzir ao erro, fazendo
crer na existência de seres criados para o mal.
LÚCIFER
Do latim lux + fero = que traz luz, que dá
claridade, luminoso.
O Versículo 12 do capítulo 14 de Isaías deu origem à palavra
Lúcifer quando da tradução da Vulgata. Alguns teólogos citam ainda Ezequiel
37:2-11 como referentes a ele. No entanto, nos textos da Bíblia hebraica e
grega, esta palavra (Lúcifer) não aparece. Vejamos uma tradução apurada do
original hebraico:
"Como caíste dos céus, estrela filha da
manhã. Foste atirada na terra como vencedora das nações"
O texto grego, em Isaías 14:12, que originou as palavra
no latim foi "ró eosfóros" (a luz matutina, astro brilhante) e
"ró proi anatelon" (nascida da manhã). Veja agora o versículo
no latim, onde São Jerônimo coloca a palavra Lúcifer: "quomodo
cecidisti de caelo LUCIFER (astro brilhante, ou luz matutina) qui mane
oriebaris corruisti in terram qui vulnerabas gentes". Que significa
"Como caíste do céu, ó estrela d'alva, filha da aurora! Como foste atirada
à terra, vencedora das nações".
Assim, fica constatado que o termo é latino, e lançado
por São Jerônimo, quando da tradução da Vulgata, no século III da era Cristã.
Alguns tentam ligar esta passagem ao Apocalipse 8,10 como sendo aí a queda de
Lúcifer, mas a história de que seria o chefe dos anjos caídos, citados na II
epístola de Pedro 2:4 e Judas 6, não tem fundamento comprovado no Antigo
Testamento, como podemos observar.
O capítulo 14 de Isaías do versículo 3 ao 22 refere-se a queda e destruição do rei Nabucodonosor da Babilônia. Foram os padres e teólogos da igreja católica que lançaram o versículo 14:12 como sendo referente a queda do príncipe dos demônios Lúcifer. Uma vez mais nos deparamos com a questão das traduções, dos folclores e das crenças pessoais!
O capítulo 14 de Isaías do versículo 3 ao 22 refere-se a queda e destruição do rei Nabucodonosor da Babilônia. Foram os padres e teólogos da igreja católica que lançaram o versículo 14:12 como sendo referente a queda do príncipe dos demônios Lúcifer. Uma vez mais nos deparamos com a questão das traduções, dos folclores e das crenças pessoais!
Fontes:
Analisando as Traduções Bíblicas - Refletindo a Essência da
Mensagem Bíblica (Severino Celestino da Silva)
O Céu e o Inferno - A Justiça Divina Segundo o
Espiritismo. (Allan Kardec)
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